terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Gato de Fora

Eu não sei precisar bem qual foi a primeira vez que vi o gato “de fora”. Deve ter sido numa dessas manhãs preguiçosas, esquentando-se ao Sol, no quintal de Margarida.
Margarida é a vizinha da direita do Château 54, uma enfermeira aposentada, muito caridosa e simpática. Seu marido é músico na principal Banda da cidade e, aos sábados de manhã, toca Sax. Sua condição de profissional da arte promove aos nossos ouvidos deliciosa sensação. A família possui um cão, Alf, que tem sequelas de uma cinomose.
O gato e o cão estavam sempre juntos, o que me fez pensar que ele também pertencia ao casal. Com o tempo, no entanto, percebi que ele buscava em Alf uma companhia, e talvez uma sobra de sua comida. Observei-o melhor e pude ver que estava magro. Algumas vezes pulava o muro e vinha para o nosso quintal com o propósito de caçar rolinhas. E, por três vezes eu fui testemunha de que foi bem sucedido.
Muito arisco, nunca tentou uma aproximação nem nos deixou fazer qualquer contato. Até que chegou Lady Billie Holiday.
Lady Billie Holiday - para mim, Billie e para Beatriz, Billiezinha - é uma gatinha encontrada num bar, do tipo “pé-sujo”, e que resolvi levar para o Château 54 por acreditar que toda casa tem que ter mais de um ser vivente. Como Beatriz tem residência fixa no Château e eu sou apenas um cometa, tinha que ter ali outro ser vivo que pudesse se locomover. Um gato seria o tipo ideal, pelas características próprias do animal a combinar com a personalidade de sua futura dona.
A partir da chegada de Lady Billie, tudo mudou para todos. No início, Beatriz criou uma resistência ao presente, mas foi conquistada pelas atitudes da bichana. Em dois dias, a gatinha já demonstrava autonomia no uso da caixinha de areia. Pronto! Foi o suficiente para baixar a guarda de sua ama.
Com o coração amolecido, Beatriz voltou seu olhar para o gato “de fora” e tratou de colocar um potinho na varanda com ração e outro com água. Instigado pelo faro, ele foi se aproximando devagarinho. A princípio durante a noite; com o tempo – e percebendo a comida sempre disponível – passou a vir pelas manhãs. De longe, anunciava sua chegada com fortes miados. Pulava da mangueira no muro e vinha, douradamente, percorrendo todo o perímetro até, finalmente, pular na varanda. Seu faro também percebeu a presença de “um igual”,  a nova moradora do Château. E, depois de fartar-se da ração, resolvia espreguiçar-se ali mesmo... Desse jeito, foi chegando, achegando-se, trocando contatos com Billiezinha e permitindo-se um toque com Beatriz. Foi ficando...
Ao confirmarmos que ele não pertencia à Margarida, pedimos na padaria mais próxima informações de sua paragem. A resposta foi duvidosa. O fato é que, a essa altura, ele já tinha se tornado Gato de Fora. E estabelecido suas rotinas. Ganhou uma caminha na varanda para os dias mais frios... Também lhe foi permitido entrar com Billie e usufruir um tempo para brincadeiras nos tapetes da cozinha e da salle de chanson. Certa vez, atreveu-se e pulou na cama; e foi repreendido imediatamente. Não repetiu a astúcia.
Gato de Fora tem sua independência. Vem em busca de seu alimento – mas de carinho também. Quando demoramos muito a manifestar-nos e responder que sua presença foi notada, trata de subir na janela e agarrar-se à tela de proteção, intensificando os miados. Fica o quanto quer e vai embora quando quer. Em alguns dias fica por longo tempo. Às vezes some e quando volta, apresenta um olho vermelho, um arranhão no rosto, um tufo de pelo arrancado. Peripécias em suas conquistas, talvez. Cuidamos de colocar uma água boricada, um spray antisséptico, e sua vida volta ao normal.
Tudo estaria perfeito se não fosse a iminência de uma mudança. Com essas voltas que a vida dá, surgiu a possibilidade de comprarmos um solar, agora sim, nosso recanto.
Como Lady Billie é uma gatinha “enclausurada” (Beatriz não gosta que eu use esse termo) e castrada, a preocupação será apenas com a adaptação ao novo ambiente, que será bem mais amplo internamente e com uma boa área de sol. Mas o que fazer com Gato de Fora? Levá-lo ou não nessa nova jornada? Ele é livre, sopra onde quer... Mas já se acostumou à garantia da ração fresquinha, à provisão da água. E aos carinhos que recebe de todos nós.
No solar poderá ser o Gato de Fora, mas num ambiente desconhecido para ele. Seria justo? Reza a lenda que gatos se apegam mais ao local que ao seu dono. Gato de Fora não tem dono. Temos a opção de castrá-lo, o que, teoricamente, o faria mais caseiro e adaptado. Mas isso o faria feliz? Ganhar uma família, a companhia constante de Lady Billie, sua dieta garantida seria o bastante? 
Não temos certeza se o Château 54 será habitado brevemente, muito menos se os novos moradores irão cuidar de manter sua rotina. Dói imaginar Gato de Fora miando, miando no vazio da varanda, na porta que não se abrirá, procurando os potinhos que não estarão mais nos degraus. Um dilema. O que fazer com Gato de Fora? Como decidir?

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