De "Livro das Horas"
Nélida Piñon
- "Eu não sabia, então, que existia o milagre da identidade. Isto é, a obrigação de ser quem eu era, enquanto crescesse aos poucos. Como se coubesse à identidade privada ditar os rumos do meu destino."
- "Pouco sei do coração. Ele tem asas e voa para longe. Tem aptidão inata para sofrer mesmo quando simula estar feliz na casa, acorrentado ao pé da cama."
- Tudo a respeito do coração me induz à cautela. De nada serve semear encômios sobre o amor, quando ele se esgota e me desgoverna, dele sobram inconstância, ambiguidade e seus efeitos devastadores."
- "O coração é perverso, não se aprimora porque amou muita vezes."
- "Mas logo, a despeito de se sentir combalido, o coração reage aos dissabores amorosos. Confia na experiência e prudência para que prontamente brote no peito a semente do novo amor, para a vida se alvoroçar, propiciar um quadro idílico, irradiar ilusões de que aquele será o derradeiro amor. E, sob o jugo de tal felicidade, das benesses da carne e do esplendor do seu pálio, anunciar que a utopia está próxima, eis a eclosão do paraíso."
- "Suponho que Deus deixa como rastro um fio de ouro visível apenas a quem olha com a força férrea do coração." (Adorei essa!)
- "O tempo me espreita, mora ao lado. Como vizinho, concede-me dias para eu gastar a gosto. Uma magnanimidade a qual retribuo consumindo a vida que me resta. Ainda que ignore quantos anos hão de sobrar para eu lhe cobrar."
- "Desfaço aos poucos as ilusões com que afago o ego e deixo aberta a porta da casa a fim de facilitar o ingresso da dama com a foice na mão. Ela virá como a amiga há muito esperada."
- "Viajo o tempo todo. Dentro e fora de mim. Como exilada, tenho a pátria certa no coração e as outras terras na imaginação."
- "Sou aventureira. Na mesa, na cama, na estrada. Nem sempre defino o que fazer no cumprimento dessa vocação. Ou menciono o que fiz com o propósito de desfrutar das peripécias vividas ao longo da travessia existencial."
- "Gravetinho é uma alegria. Admito em público meu amor por ele. Temo que, se não fora eu, talvez estivesse destinado a sofrer os horrores que os humanos reservam aos animais".
- "Gostaria tanto de apagar as dores que terá sofrido no passado, à época em que viveu por dois meses, segundo soube, em um canil público. À simples lembrança desse infortúnio, cubro-o de carinho, de beijos, de comidinha, de liberdade. Falo-lhe, faço promessas de que enquanto eu viver ele será protegido. E que, após a minha morte, designei amigos para amá-lo."
Nenhum comentário:
Postar um comentário