sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Entre a poesia e a erudição

De "Livro das Horas"
Nélida Piñon

  • "Os objetos que compramos, e levamos para casa, inventam para nós um projeto de felicidade. Instalados na sala, eles falam, têm sentimentos, preservam a memória, sobrevivem a nós. Nenhum objeto é pária, merece ser marginalizado."
  • "Um objeto é uma declaração de amor que faço ou recebo."
  • "Falar é vício humano. Antes não fosse. Preferia que a lei do silêncio fosse imposta aos mortais desde a mais tenra idade, a fim de reconhecerem o valor da palavra a ser usada."
  • "Tal excesso verbal repete-se na cama, junto aos esposos ou amantes, no parlamento, nos salões, nos grotões rurais, nas cidades. Nem Deus é poupado de ouvir o que os homens Lhe dizem com o propósito de emudecê-Lo."
  • "Os homens se igualam no teste da vida."
  • "Dezembro, por exemplo, é um mês propício aos postulados cristãos e à exibição da hipocrisia social."
  • "Dói retornar ao meu século. Suas fímbrias, que desconheço, motivam-me a pedir que afastem de mim o cálice oxidado do modernismo que me querem impor. Um tempo aziago, inserido nas correntes da fraude contemporânea, e que não tolero. Tanto que, ao ouvir os brados dos que enaltecem esta espécie de modernidade improvisada, sem me dar margem a refutar seus preceitos, sei-me demais no mundo. Temo este ímpeto de substância fascista que condena ao desterro quem não se enfileire em suas devoções estéticas."
  • "Já não quero viver neste solo fecundado  pela improvisação da arte, pelo desprezo à tradição, pela ganância do dinheiro, cujo fausto e lucro determina os rumos estéticos."
  • "Afinal, não me descuido. A vida não me deixa pensar que mereço um arrebato contínuo se não lutar por ele." (Eu também!)
  • "Há muito ordenho a vaca do cotidiano com o intuito de converter o banal em ato de presença no mundo."
  • "A noite natalina emociona-me. Impõe-me uma ordem de grandeza que consolida rituais que encerram em si pungente mensagem. Agasalhada por seus símbolos, invade-me o sentimento nascido da maturidade que se confunde com a alegria."
  • "Apesar do brilho de tal noite, pranteio as mudanças que afetaram aos poucos a cultura familiar, destruíram as paredes da antiga casa dos avós, dividindo o tronco familiar a pretexto de criar outras tribos."
  • "Levo as iguarias à mesa. O peru assado, galardoado de frutas, e os fios de ovos. E, ao lado dos que me ensinam a amar, celebrarei o estranho gosto de ser feliz."
  • "A vizinha e eu somos oblíquas. Ambas sofremos do excesso de carga que levamos às costas. A canga urbana. Mas, caso falássemos, seríamos banais. Prefiro as bocas cerradas."
  • "Tenho várias tradições. As que herdei e as que prosperam em mim, independente da minha vontade."
  • "Afinal, meu coração se enternece quando retorna à casa."
  • "Fazem-me perguntas e calo-me. Não sou interlocutor confiável nem para mim mesma. Razão de confidenciar sempre menos. Já não tenho gosto em transmitir segredos, tecer intrigas. Prefiro sustentar o mistério alheio na crença de assim acentuar as virtudes de quem desfila à minha frente."
  • "Minha cabeça é promíscua, interessam-lhe todos os assuntos."
À minha avó Maria José, que completa 90 anos hoje!

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