sábado, 12 de setembro de 2020

Colcha de vivências e memórias

Para quem cresceu em meio aos retalhos que eram jogados no chão do quarto de costura, algumas vezes misturados aos besouros pretos e cascudos (quando minha mãe costurava à noite), eu deveria ter aprendido a costurar! Já mencionei aqui, em outra oportunidade, que me arrependo disso... Passei toda a minha infância e adolescência - e parte da juventude, ao lado de minha mãe, observando... tirando um alinhavo, abrindo uma casa de botão, cortando as linhas... mas nunca me atrevi a cortar e costurar. Ela, por sua vez, também nunca fez questão de me ensinar. Então ficamos assim... Eu, cheia de ideias... Mamãe, com a prática... E combinamos muito bem, todos esses anos! E haja "inventação" de moda, literalmente! "Mãe, faz um vestido de estrelinha..." "Mãe, faz um vestido e pede à madrinha para pintar?" "Mãe, faz uma blusa de calça jeans?" "Mãe, faz esse modelo igualzinho ao da revista?" "Mãe, faz essa fronha assim..."? "Mãe, faz um laço igual ao da viúva Porcina?" "Mãe, faz essa reforma?" 
Perdi a conta de quantas vezes falei "Mãe" e fui atendida... O tempo passa... Vi minha mãe chegar ao outono da vida, costurando... Aquela agilidade de antes foi sendo substituída por uma necessidade maior de tempo, mas nem por isso com menos perfeição. Porque sim, mamãe é uma costureira perfeita. 
Ano passado, acompanhando as publicações da loja True Friends, fiquei apaixonada pelos kits de tecidos que eles colocam à venda. Comprei um de 24 retalhos (Kit Exuberance) que "conversam" entre si. Um primor! Tive o cuidado de fazer o pré-encolhimento (como aprendi com mamãe) e levei para trocar ideias com ela... Mas, por alguma razão, ela não se empolgou tanto. Também amou os tecidos, mas talvez não estivesse numa fase da vida em que a paixão e a energia pudessem se materializar. Aguardamos... O tempo tem seu próprio ritmo de fazer as coisas acontecerem. Precisamos compreender e respeitar! De fato, em fevereiro ela começou a perceber nódulos na mama direita e, mesmo em meio a essa louca pandemia, fizemos os exames e foi detectado tumor maligno. Mas, levando em conta que mamãe faz parte do seleto time "quem sofre no começo, aproveita no final", tudo transcorreu da melhor forma que foi possível, para o momento. Submetida a uma mastectomia simples, todo o tumor foi extraído, sem necessidade de radioterapia nem quimioterapia. Apenas bloqueador de hormônios. Os 76 anos ajudaram... E a disciplina de pagar sua Unimed por quase 30 anos também... 
Durante as muitas idas à Muriaé para exames e consultas, combinamos algumas coisas. Dentre elas, meu presente de 50 anos... (Porque gosto de tudo que minha mãe faz... Porque gosto de tudo que minha irmã faz... Então, sim, meus presentes de aniversário podem ser sempre as coisas que elas fazem). E a colcha de retalhos foi um dos combinados.
Passados os 40 dias da cirurgia e com resultados tão favoráveis, seus olhinhos azuis brilharam novamente... Agora, sim, a energia poderia fluir e se materializar. "Gosto tanto disso, minha filha. A Janaina disse para eu fazer palavras cruzadas... Mas eu não preciso. Costurar mexe com a cabeça. E fazer essa colcha me faz bem, não sei explicar..." (Acho que ela queria usar, em algum momento, a palavra desafio, mas, talvez por falta de hábito, não conseguiu buscá-la no vocabulário). 
Os tecidos foram cortados, embainhados, separados por duas vezes para a "combinação". Com mente cartesiana, estabeleci alguns critérios, numerei, etiquetei, levei tudo separadinho... 
Pena não encontrar as palavras certas para descrever as emoções subentendidas em cada troca de ideia, cada mudança de estratégia... 
"Não mãe, a barra apagou a colcha... Vamos inverter"
"Como você é inteligente, minha filha". 
"Mãe, coloca acabamento de viés no avesso, que dá para usar dos dois lados..." 
"Olha, eu precisei emendar uma tira aqui..." 
"Mãe, que avesso perfeito!"
"Preciso que você organize as fronhas".
"Comprei renda, pode usar à vontade, aonde a senhora quiser..."
(numa tarde de quinta a gente aparece com um saco de pão para o café...)
"Foi Deus que te mandou aqui... Precisamos pensar em como terminar as fronhas, faltou um pedaço de pano, mas já dei um jeito."
"Mãe, nada de velcro nas fronhas, vamos colocar botão como a vovó fazia..."
"Ah, então vou fazer caseado à mão. Valoriza mais..." (linha encerada com cera de abelha... Dá para imaginar a preciosidade disso?).
Sou grata por ter olhos de ver... E saber aproveitar esses momentos enquanto estou caminhando dentro deles. 
A felicidade pode ser assim: uma colcha de retalhos costurada pelos fios das vivências que se transmudam em memórias.











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