quarta-feira, 15 de junho de 2022

Sobre as coisas inimagináveis

Quando eu era criança custava muito para dormir e muitas vezes me angustiava perceber que todos da casa já dormiam e eu continuava acordada. Um dia, conversando com um tio, a quem tinha muito apreço, mencionei esse fato e ele me orientou a criar uma história na minha cabeça e ficar imaginando... imaginando... até que em determinado momento eu iria dormir, sem perceber. No dia seguinte, ao me deitar, eu deveria puxar o fio da memória à última lembrança e continuar a história (creio que ele me sugeriu algo como a prática de Sherazade, embora não tenha mencionado isso). Coloquei sua sugestão em prática e deveras adentrei no universo da vida que a gente sonha antes de dormir. Tempos depois é que pude fazer algumas análises. O fato de morar em um sítio sem energia elétrica nos obrigava a dormir mais cedo (mesmo com algumas horas de leitura à luz de velas) e para uma criança cheia de energia e disposição física isso representava um desconforto "diagnosticado" por insônia. Se, àquela época, ao invés de só imaginar eu tivesse escrito minhas histórias, talvez já fosse até uma escritora (rsrsrsrs), afinal, o que não faltou foi imaginação... Mas, neste caso, entram outras análises: se eu tivesse levantado para escrever talvez meu sono fosse embora de vez... Como saber? Nesta altura da vida isso não faz mais sentido. O que ficou desse período foi a percepção que existe uma vida que a gente imagina (ou sonha) antes de dormir e que com o passar do tempo percebemos que raramente ela se realiza. A vida é muito mais o resultado das coisas inimagináveis. Não estou falando de metas, objetivos práticos, reformas. Busco registrar aqui os contextos maiores. Certa vez encontrei no Instagram um post que traduzia bem esse meu sentimento. Pensei: mais alguém no mundo "inventa moda" antes de dormir.


Todo esse "prólogo" foi para registrar outra vivência, agora de forma mais sucinta e que justifica o título de nossa postagem. Ontem meu professor Eno (de Enoghalliton de Abreu Arruda) despediu-se da turma. Foi a última aula antes da semana de provas. Fizemos uma roda para discutir Hannah Arendt e, como alma iluminada que é, ele fez suas considerações finais e anunciou seu desligamento da faculdade. Está concluindo o curso de Medicina e imagino que vai para a residência. Quando fui abraçá-lo, eu disse que quando precisasse de médico no futuro, eu iria procurá-lo (meu plano de saúde é o SUS, então melhor contar com os amigos granjeados ao longo do caminho). Foi então que ele me respondeu assim: "vou fazer psiquiatria. Seu nome já está registrado em meu caderno para trabalhar comigo. Você fará parte da minha equipe". Fiquei impactada, confesso. O impacto que sente o despretensioso. Porque essa resposta faz parte daquelas coisas inimagináveis que acontecem na vida. Então me lembrei que todas as vezes que agi sem grandes pretensões de projeção foi quando obtive os melhores resultados. Oxalá eu consiga concluir, com êxito, esse caminho iniciado sem presunção, mas com o mesmo amor e dedicação dos meus tempos de insônia infantil. Pode ser que nossos caminhos venham se cruzar novamente - ou não. O que vale ficar nas dobras do tempo é a sua resposta - que para mim, até então, fazia parte do universo das coisas inimagináveis. Sem nenhuma pretensão.

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