DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO:
ABORDAGEM SOBRE A EXPERIÊNCIA DA PSICOLOGIA
NO CENTRO DE ATENDIMENTO PSICOSSOCIAL (CAPS)
Alessandra Barros Cretton
Angelita Costa Freitas
Silvana Jorge Ramos
Resumo: Este artigo traz à análise e reflexão o atendimento da população LGBTQI+ nos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS), com um recorte particular ao CAPS de Santo Antônio de Pádua e Miracema, municípios vizinhos na região Noroeste Fluminense. Os Centros de Atenção Psicossocial são unidades da estrutura de atendimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) especializadas em saúde mental para tratamento e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave e persistente. Os centros oferecem um atendimento interdisciplinar com objetivo de promover um tratamento efetivo e principalmente, humanizado. Apesar de a população LGBTQI+ não se enquadrar como sujeitos com patologias, o processo de sofrimento ainda a acompanha, visto que continua subjugada às mais diversas formas de violência, tornando-se predisposta a um maior sofrimento mental. Dessa forma, constatou-se a importância do acesso à saúde mental, bem como aos serviços oferecidos, em especial o CAPS, realçando o espaço ocupado por essa população dentro desse dispositivo assistencial, com vistas a um trabalho profissional em que prevaleça a não discriminação e eliminação de todas as formas de preconceitos.
Palavras-chave: Diversidade Sexual e de Gênero; Psicologia; Saúde Mental
INTRODUÇÃO
Historicamente as diversidades no campo das sexualidades e dos gêneros foram tratadas sob uma ótica conservadora, moralista, com enfoque negativo e de punição. Com isso, ao longo dos séculos diversas instituições tentaram enquadrá-las como patologia. Vítimas dos mais diversos tipos de agressões e perseguições por sociedades e culturas que propagavam o heterosexismo e a heteronormatividade como verdades absolutas e incontestáveis, eram tratadas como loucas, criminosas, abjetas e pecadoras. No Brasil, assim como na maioria dos outros países, essa realidade hostil não se deu de maneira distinta.
No entanto, a exposição constante a diversos tipos de agressões fez crescer um movimento de contestação, cuja pauta era a liberdade de orientação sexual e de gênero e, de fato, em 1990 a homossexualidade foi retirada do Catálogo Internacional de Doenças (CID) na sua 10ª edição (CID-10), pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Assim, as lésbicas e os gays deixaram de ser considerados doentes mentais, que necessitavam de uma intervenção médico-psiquiátrica e, algumas vezes, tratamento manicomial.
Em 2001, o Brasil deu um grande passo na concepção da saúde mental, com a publicação da Lei 10.216/2001, que instituiu a Política Nacional de Saúde Mental, na qual a denominação “doente mental” passa a não ser mais adotada, sendo substituída por transtorno mental (BRASIL, 2001). Tal mudança significou um dos muitos avanços na busca pela garantia da cidadania destas pessoas. Em seu Art. 1º define que:
Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discrimanção quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.
Nesse sentido, o presente artigo buscou investigar, a partir da inserção em dois Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS), o espaço que a população LGBTQI+ ocupa nos serviços públicos de saúde mental dos municípios vizinhos de Miracema e Santo Antônio de Pádua, localizados na região Noroeste Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. É sabido que muitas pessoas LGBT evitam os serviços públicos para não passarem por constrangimentos diversos, em um contexto onde supostamente deveriam ser cuidadas. Para tanto, o objetivo geral foi analisar as narrativas das psicólogas e assistentes sociais dos referidos Centros, observando posicionamentos e produção de sentidos sobre a saúde mental desse público, em específico. A metodologia envolveu entrevista aberta, direcionada a partir de algumas questões pontuadas como por exemplo a demanda dessa população no CAPS; como acontece o atendimento psicológico; as barreiras de acesso aos serviços; se já recebeu algum tipo de capacitação para o atendimento das demandas dessa populção, entre outras. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, embasada na perspectiva sócio-construcionista. Esse trabalho analisa a temática, de forma introdutória, deixando em aberto novas possibilidades de investigação, sob a narrativa e perspectiva dos usuários.
As equipes básicas que constituem os CAPS, nos dois municípios, são compostas por médicos, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, que possuem, através dos seus Conselhos Profissionais, Códigos de Ética e Resoluções que expressam preceitos importantes como a não discriminação pela orientação sexual e identidade de gênero, bem como a despatologização dos mesmos. Para fins didáticos e como preservação da identidade dos serviços e profissionais envolvidos, por uma questão de ética em pesquisa em ciências sociais, os equipamentos foram nomeados como CAPS A e CAPS B.
A ABORDAGEM SOBRE A EXPERIÊNCIA NO CAPS A
No CAPS descrito como “A”, a abordagem se deu de forma presencial, com recepção da psicóloga e assistente social. Houve um diálogo acolhedor e o objetivo do trabalho foi esclarecido, ficando a cargo da psicóloga responder por escrito algumas questões norteadoras. No quesito sobre a demanda da população no CAPS A, a psicóloga respondeu brevemente “um atendimento específico à população LGBT não há. Temos demandas de pessoas de todas as condições, independente de sua orientação sexual e de gênero”. Desse modo, não fica claro se, no momento, o CAPS A tem algum usuário desse grupo. Vale ressaltar que a questão não tratava de atendimento “específico”; apenas atendimento. Sobre a forma como acontece o atendimento psicológico dessa população no CAPS A, também discorreu sinteticamente “da mesma forma que acontece com todos: o atendimento é feito independente da condição física, sexual, de gênero etc. São todos seres humanos”. Como a bibliografia aponta que a população LGBT enfrenta graves barreiras de acesso às políticas públicas, apesar de todo o aparato legal, foi questionado se essa também é uma realidade do CAPS A. “De forma alguma. O CAPS é um serviço aberto a todo e qualquer tipo de população. Por já haver uma grande carga de preconceito em relação à saúde mental, os pacientes, independentemente de sua opção em termos de sexualidade, são acolhidos com igualdade e sem nenhuma diferenciação.” Neste ponto, é possível citar DUARTE (2011, p.93):
De igual sentido, observa-se a dissolução da concepção de patologia, desvio, distúrbio ou perversão para orientação sexual (...).
A orientação sexual (hétero, homo ou bi) não possui explicação científica e também não é uma escolha, por isso o termo “opção sexual” não é correto. A pessoa descobre-se ao longo de seu desenvolvimento e, a partir daí, tem noção de sua atração por um ou mais gêneros.
Sobre a capacitação para o atendimento das demandas relacionadas à população LGBT também discorreu de forma sucinta: “não fiz e não vejo necessidade, pois o trabalho é o mesmo para todos.” FERREIRA et al (2018) alerta, a partir de suas pesquisas, que “é de extrema necessidade que as equipes de saúde, em especial, da saúde mental, busquem por capcitações permanentes e discussões dentro dos espaços institucionais, uma vez que os trabalhadores não estão isentos de reproduzirem a lógica dominante da sociedade”. Por fim, sobre algum caso relevante a compartilhar: “vários pacientes vem em busca de atendimento por estar passando por processos depressivos, com suas angústias e tormentos”. A partir daí narra sobre um usuário acompanhado no ambulatório desde a infância, com histórico de conflitos familiares por não aceitação de sua “opção sexual” e que viu como única alternativa ingressar na prostituição como meio de sobrevivência.
A ABORDAGEM SOBRE A EXPERIÊNCIA NO CAPS B
No CAPS descrito como “B” o primeiro contato também foi presencial com a assistente social. Como não era dia de plantão da psicóloga, a assistente se comprometeu em fazer um elo entre entrevistador/entrevistada e a partir daí os contatos aconteceram de forma remota, através do suporte WhatsApp. As mesmas perguntas norteadoras foram feitas e na questão da demanda, foi esclarecido que: “como o CAPS é um CAPS I, atendemos todo o tipo de demanda que chegam ao serviço. O atendimento é generalizado e toda população que procura é acolhida e direcionada; é vista a necessidade desse paciente, se vai ser atendimento médico, psicológico, o que vai ser o melhor.” Sobre o atendimento psicológico ressalta novamente a questão da classificação do CAPS I, e de forma objetiva diz que “faz o direcionamento, claro, avalia a questão de riscos, faz a escuta e qual é especificamente a demanda; é acolhido e direcionado em relação ao que necessita. O atendimento psicológico é feito da mesma forma como é conduzido os demais atendimentos.” Um ponto a destacar na fala é sobre a avaliação de riscos; embora ela não discorra mais especificamente sobre esses riscos, fica evidente a preocupação em garantir a integridade do usuário. Sobre as barreiras de acesso aos serviços, destaca: “a demanda é muito grande para o serviço de psicologia no CAPS, independentemente de ser para essa população. O número de profissionais é insuficiente para dar conta de toda a demanda; mas é feita a avaliação de riscos, a avaliação dos casos e são direcionados de acordo com a urgência, a necessidade. Mas temos estratégias, alguns grupos para onde são direcionados; não há discriminação, na minha percepção; todos que chegarm foram acolhidos e atendidos dentro de suas necessidades. Mas eu entendo que possa haver ainda essa dificuldade nos serviços de saúde, principalmente para lidar com as questões “trans”, com a questão da transição do gênero, isso é muito complexo ainda em alguns serviços. Nós profissionais de saúde mental, eu entendo que precisamos nos capacitar mais para que a gente possa prestar o melhor atendimento, o melhor acolhimento a essa demanda.” Sobre a população transexual, dentro do universo LGBT, convém ressaltar que é tida como a população mais estigmatizada, vítima dos mais diversos tipos de preconceito e, consequentemente, das mais diversas formas de violência. Em 2019, a Revista Gênero e Número (2019), informou um aumento de 800% nas notificações de violência contra pessoas trans entre os anos de 2014 a 2017. Este número sugere que diariamente onze pessoas trans são agredidas no Brasil.
Ao abordar a questão do acesso, a psicóloga do CAPS B já levantou a questão da necessidade de capacitação, e, em um áudio seguinte ela acaba constatando esse fato, ressaltando, ainda, que nunca fez uma formação específica para o tema, mas que acha extremamente importante. E, quando solicitada a discorrer sobre um caso relevante, fez o seguinte relato: “já tivemos uma travesti que trabalhava conosco, ela trabalhava como oficineira e nunca sofreu nenhum tipo de preconceito, principalmente por parte dos pacientes mais graves e nem por parte da equipe; o serviço de saúde mental já contou com o trabalho de uma travesti e foi muito bacana, foi muito legal, uma construção muito positiva.”
CONCLUSÕES
Em estudo realizado, Alex Ceará e Paulo Dalgalarrondo (2010) sugerem a frequência de transtornos depressivos, ideação suicida, uso e abuso de álcool e outras drogas, ansiedade generalizada entre a população LGBT em função da LGBTfobia. A construção de redes de apoio como Centros de Cidadania, Centros de Assistência à Saúde Mental (CAPS) tornam-se imprescindíveis neste cenário. O meio familiar, o espaço escolar, o local de trabalho, a rua, o convívio social como um todo pode ser extremamente violento, não apenas para os transexuais, mas para as diversidades sexuais e de gênero. É necessário ressaltar que na atual conjuntura, a saúde mental, os direitos da classe trabalhadora e os direitos específicos da população LGBT encontram-se ameaçados pela onda conservadora e retrógrada do atual governo. Devemos, portanto, reafirmar a resistência com o compromisso ético-político de erradicação de todas as formas de preconceito e discriminação, sem dominação, exploração e opressão. A pesquisa notou a necessidade de retomada constante do tema, aprofundamento de alguns tópicos, escuta da outra “face” do CAPS, ou seja, a história narrada sob o ponto de vista do usuário, a fim de dar visibilidade a narrativas pouco conhecidas. A análise enfatiza a potência da discussão sobre o tema, com vistas a contribuir para a qualificação dos equipamentos de políticas públicas, em especial o CAPS, assegurando os direitos à população LGBTQI+, a partir de atenção e cuidado integral à saúde mental dessa população.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Caderno de Atenção Básica, n. 26: Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília, 2004.
______. Lei Federal Nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Brasília, 2001.
CEARÁ, A. de T.; DALGALARRONDO, P. Transtornos mentais, qualidade de vida e identidade em homossexuais na maturidade e velhice. Revista de Psiquiatria Clínica. São
Paulo, v. 37, n. 3, p.118-23, 2010.
Diversidade Sexual e de Gênero na Saúde Mental: Aproximações e experiências no campo da pesquisa. Larissa de Castro Marção FERREIRA et al. Disponível em Vol.2, n.01, Jan. – Mar., 2018 . www.revistas.unilab.edu.br/index.php/rebeh
DUARTE, M. J. de O. Diversidade sexual e Política Nacional de Saúde Mental: contribuições pertinentes dos sujeitos insistentes. In: Em Pauta – Teoria Social e Realidade Contemporânea – Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, n. 28, p. 83-102, dezembro de 2011.
REVISTA GÊNERO E NÚMERO. Transfobia: 11 pessoas trans são agredidas a cada dia
no Brasil. 27 de junho de 2019. Disponível em: http://www.generonumero.media/transfobia-11-pessoas-trans-saoagredidas-a-cada-dia-nobrasil-2/
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