De "Livro das Horas"
Nélida Piñon
- "Tenho sede e fome. Fraquejo a pretexto de me humanizar. A tentação do mundo se acentua já pela manhã, quando aspiro uma versão benfazeja da minha espécie."
- "Falho sempre e não me consola observar os seres em torno. Alguns, fantoches, capengam na sua dimensão moral. Outros, proclamam uma falsa santidade. Herdeiros todos do frustrado sonho de uma humanidade que inventou as utopias religiosas a fim de se redimir. Mas em nome de que princípio pleiteamos as maravilhas que abundam na terra?"
- "Diante de tantas dádivas, a vida cobra a própria vida." (com certeza!)
- "Ando pela casa, passo em revista os objetos, os papéis, as comidas. É de difícil manutenção a fidelidade às ideias, aos seres, à memória."
- "Cada qual tem a casa que lhe serve de abrigo. O lar que aloja símbolos empilhados capazes de contar uma história. Meras senhas de acesso à alma."
- "A casa está onde me encontro. Reitero meu amor por ela. Ela vive tanto quanto eu. Gravetinho dá-me boas vindas e eu proclamo meu amor por ele, para que jamais duvide."
- "O coração surpreende-me. Quando o penso moderado, incapaz de arroubos, ele se alarga, pronto a viver novos afetos, nascidos da matriz que propaga a carência humana."
- "Curiosa que sou, vejo-me às vezes refletida em alguém como se ele fosse minha réplica."
- "Na sala, Gravetinho fuça os pormenores de uma realidade recente para ele. Pequeno, de cor de mel, ele me faz rir e chorar na medida justa. Sorrio, agradecida, por me trazer vida. Altivo na sua soberania, ele não valoriza que eu renuncie a certos prazeres só para não deixá-lo sozinho na casa. Ignora que seu bem-estar é para mim um assunto moral. Minha consciência está a seu serviço e é melhor assim."
- "O ano está prestes a acabar, há que se prestar contas, fazer votos, pedir trégua aos desafetos (...)"
- "Solicitar, sobretudo, mesa farta para os humilhados, febre para os indiferentes, clemência amorosa."
- "Que planos tenho? Se possível, viver, trabalhar, esforçar-me por compreender a batalha comum de cada homem. E festejar o sábado vindouro que será, quem sabe, prazeroso."
- "Fortalece-me saber que levo no coração os laços forjados no curso da vida e que, embora alguns se tenham desfeito, não pretendo viver da moeda do rancor ou da felicidade."
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