Eu não sei precisar bem qual foi
a primeira vez que vi o gato “de fora”. Deve ter sido numa dessas manhãs
preguiçosas, esquentando-se ao Sol, no quintal de Margarida.
Margarida é a vizinha da direita
do Château 54, uma enfermeira aposentada, muito caridosa e simpática. Seu
marido é músico na principal Banda da cidade e, aos sábados de manhã, toca Sax.
Sua condição de profissional da arte promove aos nossos ouvidos deliciosa
sensação. A família possui um cão, Alf, que tem sequelas de uma cinomose.
O gato e o cão estavam sempre
juntos, o que me fez pensar que ele também pertencia ao casal. Com o tempo, no
entanto, percebi que ele buscava em Alf uma companhia, e talvez uma sobra de
sua comida. Observei-o melhor e pude ver que estava magro. Algumas vezes pulava
o muro e vinha para o nosso quintal com o propósito de caçar rolinhas. E, por
três vezes eu fui testemunha de que foi bem sucedido.
Muito arisco, nunca tentou uma
aproximação nem nos deixou fazer qualquer contato. Até que chegou Lady Billie
Holiday.
Lady Billie Holiday - para mim,
Billie e para Beatriz, Billiezinha - é uma gatinha encontrada num bar, do tipo “pé-sujo”,
e que resolvi levar para o Château 54 por acreditar que toda casa tem que ter
mais de um ser vivente. Como Beatriz tem residência fixa no Château e eu sou
apenas um cometa, tinha que ter ali outro ser vivo que pudesse se locomover. Um
gato seria o tipo ideal, pelas características próprias do animal a combinar
com a personalidade de sua futura dona.
A partir da chegada de Lady
Billie, tudo mudou para todos. No início, Beatriz criou uma resistência ao
presente, mas foi conquistada pelas atitudes da bichana. Em dois dias, a
gatinha já demonstrava autonomia no uso da caixinha de areia. Pronto! Foi o
suficiente para baixar a guarda de sua ama.
Com o coração amolecido, Beatriz
voltou seu olhar para o gato “de fora” e tratou de colocar um potinho na
varanda com ração e outro com água. Instigado pelo faro, ele foi se aproximando
devagarinho. A princípio durante a noite; com o tempo – e percebendo a comida
sempre disponível – passou a vir pelas manhãs. De longe, anunciava sua chegada
com fortes miados. Pulava da mangueira no muro e vinha, douradamente,
percorrendo todo o perímetro até, finalmente, pular na varanda. Seu faro também
percebeu a presença de “um igual”, a nova
moradora do Château. E, depois de fartar-se da ração, resolvia espreguiçar-se
ali mesmo... Desse jeito, foi chegando, achegando-se, trocando contatos com
Billiezinha e permitindo-se um toque com Beatriz. Foi ficando...
Ao confirmarmos que ele não
pertencia à Margarida, pedimos na padaria mais próxima informações de sua paragem.
A resposta foi duvidosa. O fato é que, a essa altura, ele já tinha se tornado
Gato de Fora. E estabelecido suas rotinas. Ganhou uma caminha na varanda para
os dias mais frios... Também lhe foi permitido entrar com Billie e usufruir um
tempo para brincadeiras nos tapetes da cozinha e da salle de chanson. Certa vez, atreveu-se e pulou na cama; e foi
repreendido imediatamente. Não repetiu a astúcia.
Gato de Fora tem sua
independência. Vem em busca de seu alimento – mas de carinho também. Quando
demoramos muito a manifestar-nos e responder que sua presença foi notada, trata
de subir na janela e agarrar-se à tela de proteção, intensificando os miados. Fica
o quanto quer e vai embora quando quer. Em alguns dias fica por longo tempo. Às
vezes some e quando volta, apresenta um olho vermelho, um arranhão no rosto, um
tufo de pelo arrancado. Peripécias em suas conquistas, talvez. Cuidamos de
colocar uma água boricada, um spray antisséptico, e sua vida volta ao normal.
Tudo estaria perfeito se não
fosse a iminência de uma mudança. Com essas voltas que a vida dá, surgiu a
possibilidade de comprarmos um solar, agora sim, nosso recanto.
Como Lady Billie é uma gatinha
“enclausurada” (Beatriz não gosta que eu use esse termo) e castrada, a
preocupação será apenas com a adaptação ao novo ambiente, que será bem mais
amplo internamente e com uma boa área de sol. Mas o que fazer com Gato de Fora?
Levá-lo ou não nessa nova jornada? Ele é livre, sopra onde quer... Mas já se
acostumou à garantia da ração fresquinha, à provisão da água. E aos carinhos
que recebe de todos nós.
No solar poderá ser o Gato de
Fora, mas num ambiente desconhecido para ele. Seria justo? Reza a lenda que
gatos se apegam mais ao local que ao seu dono. Gato de Fora não tem dono. Temos
a opção de castrá-lo, o que, teoricamente, o faria mais caseiro e adaptado. Mas
isso o faria feliz? Ganhar uma família, a companhia constante de Lady Billie,
sua dieta garantida seria o bastante?
Não temos certeza se o Château 54
será habitado brevemente, muito menos se os novos moradores irão cuidar de manter
sua rotina. Dói imaginar Gato de Fora miando, miando no vazio da varanda, na
porta que não se abrirá, procurando os potinhos que não estarão mais nos
degraus. Um dilema. O que fazer com Gato de Fora? Como decidir?