... essa mesa também!
Quando eu era criança havia uma senhora, chamada Dona Flávia, que morava na fazenda do meu tio-avô Clarindo de Barros. Pessoa muito querida no lugar. Casa sempre cheia de gente... Lembro-me que sempre íamos lá... Era uma casa alta do chão, com uma escada de madeira que dava acesso a uma varanda, também de madeira. (Debaixo dessa varanda, no terreiro batido e limpo "de brilhar" ficava uma talha de barro cheia d'água e uma caneca de alumínio). Toda de assoalho de tábuas largas, tinha uma sala grande, como as casas de antigamente. Mas nós ficávamos mesmo era na cozinha, bancos compridos de madeira, fogão à lenha sempre aceso... 24 horas aquelas brasas acesas... Café servido nas canequinhas de ágata... Havia um quartinho pequeno que saía para a cozinha (talvez uma despensa, nos áureos tempos da casa) e ela nos levava ali para as benzeduras... Sinal da cruz, galhinhos nos ombros pra lá e pra cá... orações... E de lá saíamos a correr no terreiro e rir dos gracejos da Elzira, sua filha surda-muda, mas que falava mais que os dois cotovelos juntos...
Quando ela fez 80 anos, meu tio fez uma grande festa para o seu aniversário. Era 04 de julho, confirmou minha mãe, que tem uma memória prodigiosa para lembranças... Foi uma festa julina, com direito a fogueira de verdade, um bolo imenso, e todos os convidados dançando quadrilha... Tinha muita gente... No terreiro formou-se uma grande roda... Nada ensaiado previamente... As pessoas iam chegando e se juntando umas às outras e, quando viam, já estavam no ritmo do sanfoneiro (acho que era o Sr. Moacyr, outro vizinho). Eu devia ter uns 10, 11 anos...
O tempo seguiu seu curso e as visitas começaram a ficar mais escassas... Envolvida com os estudos (na cidade), não sobrava muito tempo para as visitações descompromissadas da infância. Até que um dia, chegou a notícia que D. Flávia havia falecido. Como boa filha, fui acompanhar minha mãe ao velório. Já contava com uns 17, 18 anos... A casa continuava do mesmo jeito. O que tinha mudado era o meu olhar e a minha percepção das coisas e da vida ali vivida. Tudo muito simples, mas exalava em cada canto muita religiosidade. Como era de costume, a urna ficava centralizada na sala de visitas e aqueles que chegavam ficavam um tempo em condolências e orações, e depois espalhavam-se pela casa e seu entorno. Assim também fizemos e, num determinado momento me vi arrastada pela minha mãe e a Lourdes (uma das filhas da D. Flávia) para um quarto anexo. Encostei-me na janela (talvez para tomar um ar) e alheia à conversação das duas, comecei a observar o ambiente. Tudo era madeira ao redor de mim: chão, móveis, telhado... Um oratório na parede com aquele paninho branco bordado... os santos de devoção... velas apagadas... E... uma mesa! Tipo escrivaninha... Branca, muito gasta pelo tempo. Faltava-lhe uma gaveta e o tampo apresentava sinais de cupim. Mas ela tinha um quê de especial: os pés torneados, uma base (talvez para apoiar os pés) em curva sinuosa, aquele acabamento do tampo "mais altinho", bem peculiar. Fiquei imaginando de quem teria sido... Qual marceneiro fez aquela obra? Quantos já teriam sentado para escrever cartas, fazer contas...Que história tinha aquela linda escrivaninha? Ali, ela parecia apenas um objeto encostado numa parede para apoiar as lamparinas ou velas. Nenhum adorno. Em meio a tantas conjecturas - que eu prefiro chamar de reflexões - "pulou" de minha boca a seguinte pergunta: "Lourdes, o que vocês vão fazer com essa mesinha?" Antes mesmo dela manifestar a surpresa pela pergunta com um "não sei" quase inaudível, eu emendei: "porque se ninguém quiser, eu quero!" Confesso que não me lembro mais se a conversa se estendeu ou se com essa frase eu também coloquei um ponto final. Fomos embora... Tempos depois cheguei no sítio e o papai falou: "a Lourdes mandou falar para você ir lá buscar a mesa". Eu já nem me lembrava do fato, mas fiquei muito feliz e pedi que ele pegasse para mim. Como bom marceneiro, refez o tampo e as gavetas na marcenaria onde trabalhava - na própria fazenda do Clarindo de Barros (que nesse tempo também já havia partido) e a levou para mim... Coloquei-a no quarto do sítio assim mesmo, com seus remendos, sem pintura. Em 2000 levei-a para morar comigo. Papai fez uma moldura para espelho, para acompanhá-la, e eu mandei fazer uma pátina amarela. Ficou linda na nossa sala e nos acompanhou em algumas mudanças... Porém, como bem disse um amigo certa vez... "quem mora de aluguel não pode ter piano", em alguns apartamentos não havia espaço para tantos móveis e eu tinha que priorizar. E ela voltou para o sítio... Dessa vez, ficou na sala, com a mesma função de quando a conheci: aparador... de copos, garrafas d'água, pacotes de biscoito e potinhos de danoninho que ali se acumulavam com a presença dos netos.
Nesse período de quarentena, voltei o meu olhar novamente para a escrivaninha, quase tão gasta quanto no dia em que a conheci. Como sou sua guardiã e agora posso até ter um piano, tratei de mandar reformá-la (dessa vez somente o tampo foi trocado) e fazer uma pintura especial. Fiquei com a ideia original do branco (porque foi assim que a conheci), no entanto, mais uma vez "pulou" o azul quando o rapaz pediu para confirmar a cor. Azul era o armário da minha avó... Azul é minha cor favorita... Ontem, ela voltou para minha companhia. Não sei se será sua morada definitiva... (nada é definitivo, não é mesmo?). Por ora, está ali entre os dois quartos, guardando lembranças. Mas tenho planos para ela... Não vai ficar imóvel, sem vida... Quero as arranhaduras do tempo, os quebradinhos... Comigo, já se vão uns 30 anos... Quanto tempo terá ficado com a Dona Flávia? Não sei... Mas quando essa pandemia passar, pretendo visitar a Lourdes, mostrar as fotos e, quem sabe, descobrir mais sobre as memórias dessa linda escrivaninha? Que ela possa sobreviver a mim e encantar outros olhares para continuar sua história...
O tempo seguiu seu curso e as visitas começaram a ficar mais escassas... Envolvida com os estudos (na cidade), não sobrava muito tempo para as visitações descompromissadas da infância. Até que um dia, chegou a notícia que D. Flávia havia falecido. Como boa filha, fui acompanhar minha mãe ao velório. Já contava com uns 17, 18 anos... A casa continuava do mesmo jeito. O que tinha mudado era o meu olhar e a minha percepção das coisas e da vida ali vivida. Tudo muito simples, mas exalava em cada canto muita religiosidade. Como era de costume, a urna ficava centralizada na sala de visitas e aqueles que chegavam ficavam um tempo em condolências e orações, e depois espalhavam-se pela casa e seu entorno. Assim também fizemos e, num determinado momento me vi arrastada pela minha mãe e a Lourdes (uma das filhas da D. Flávia) para um quarto anexo. Encostei-me na janela (talvez para tomar um ar) e alheia à conversação das duas, comecei a observar o ambiente. Tudo era madeira ao redor de mim: chão, móveis, telhado... Um oratório na parede com aquele paninho branco bordado... os santos de devoção... velas apagadas... E... uma mesa! Tipo escrivaninha... Branca, muito gasta pelo tempo. Faltava-lhe uma gaveta e o tampo apresentava sinais de cupim. Mas ela tinha um quê de especial: os pés torneados, uma base (talvez para apoiar os pés) em curva sinuosa, aquele acabamento do tampo "mais altinho", bem peculiar. Fiquei imaginando de quem teria sido... Qual marceneiro fez aquela obra? Quantos já teriam sentado para escrever cartas, fazer contas...Que história tinha aquela linda escrivaninha? Ali, ela parecia apenas um objeto encostado numa parede para apoiar as lamparinas ou velas. Nenhum adorno. Em meio a tantas conjecturas - que eu prefiro chamar de reflexões - "pulou" de minha boca a seguinte pergunta: "Lourdes, o que vocês vão fazer com essa mesinha?" Antes mesmo dela manifestar a surpresa pela pergunta com um "não sei" quase inaudível, eu emendei: "porque se ninguém quiser, eu quero!" Confesso que não me lembro mais se a conversa se estendeu ou se com essa frase eu também coloquei um ponto final. Fomos embora... Tempos depois cheguei no sítio e o papai falou: "a Lourdes mandou falar para você ir lá buscar a mesa". Eu já nem me lembrava do fato, mas fiquei muito feliz e pedi que ele pegasse para mim. Como bom marceneiro, refez o tampo e as gavetas na marcenaria onde trabalhava - na própria fazenda do Clarindo de Barros (que nesse tempo também já havia partido) e a levou para mim... Coloquei-a no quarto do sítio assim mesmo, com seus remendos, sem pintura. Em 2000 levei-a para morar comigo. Papai fez uma moldura para espelho, para acompanhá-la, e eu mandei fazer uma pátina amarela. Ficou linda na nossa sala e nos acompanhou em algumas mudanças... Porém, como bem disse um amigo certa vez... "quem mora de aluguel não pode ter piano", em alguns apartamentos não havia espaço para tantos móveis e eu tinha que priorizar. E ela voltou para o sítio... Dessa vez, ficou na sala, com a mesma função de quando a conheci: aparador... de copos, garrafas d'água, pacotes de biscoito e potinhos de danoninho que ali se acumulavam com a presença dos netos.
Nesse período de quarentena, voltei o meu olhar novamente para a escrivaninha, quase tão gasta quanto no dia em que a conheci. Como sou sua guardiã e agora posso até ter um piano, tratei de mandar reformá-la (dessa vez somente o tampo foi trocado) e fazer uma pintura especial. Fiquei com a ideia original do branco (porque foi assim que a conheci), no entanto, mais uma vez "pulou" o azul quando o rapaz pediu para confirmar a cor. Azul era o armário da minha avó... Azul é minha cor favorita... Ontem, ela voltou para minha companhia. Não sei se será sua morada definitiva... (nada é definitivo, não é mesmo?). Por ora, está ali entre os dois quartos, guardando lembranças. Mas tenho planos para ela... Não vai ficar imóvel, sem vida... Quero as arranhaduras do tempo, os quebradinhos... Comigo, já se vão uns 30 anos... Quanto tempo terá ficado com a Dona Flávia? Não sei... Mas quando essa pandemia passar, pretendo visitar a Lourdes, mostrar as fotos e, quem sabe, descobrir mais sobre as memórias dessa linda escrivaninha? Que ela possa sobreviver a mim e encantar outros olhares para continuar sua história...
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