sábado, 11 de outubro de 2014

Entre a poesia e a erudição

De "Livro das Horas"
Nélida Piñon

  • "A vida é natural. Ajustada ao corpo, sem razão se desorienta. Como quando, ao programar meu cotidiano, pareceu-me fácil amar de repente um bichinho indefeso e desamparado que tenho em casa, de nome Gravetinho. Ele é de cor de mel, porte pequeno, rechonchudo devido aos excessos que lhe concedo. (...) Rebelde, ele aceita-me como parte da sua existência. (...) Vê-lo é uma novidade que desejo eternizar na minha vida. (...) Ele é um mistério e uma certeza. Encarna mais o sentido de lar que as paredes da minha casa. Não lhe foi dado o dom da fala, mas aprovo o seu silêncio. Contudo, faço-o saber da existência da linguagem, povoada de palavras. Ajo com cautela, não o quero humilhar, insinuando que é iletrado. (...) Realço-lhe as virtudes com intenso prazer. (...) assumi um compromisso moral que ele não sabe, mas eu sei. E hei de cumprir até o fim.(...) Amo Gravetinho. Meu mote atual reduz-se em dizer: eu não estava preparada para este amor."
  • "Faziam da tragédia um bem necessário a fim de testar nossa humanidade. De que outra forma exacerbar o cotidiano em geral mesquinho?"
  • "Insone, consulto os ponteiros do relógio sobre a mesinha de cabeceira atapetada de livros, de papéis, do pequeno anjo da guarda dourado ganho no dia do meu batizado, a salvo dos anos, e que conservo ao meu lado, sem saber a quem deixar após minha morte."
  • "Já não conto com a parede do amor materno para obstruir a passagem da morte que virá com sua foice."
  • "Nenhum autor me conciliou com os limites da casa dos pais, atou-me às paredes estreitas do lar e do quintal. Empenharam-se todos em me desalojar do eixo da alma, este lugar impróprio para guardar as inquietações do mundo."

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