sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Memorial Célia Maria Lira Jannuzzi (por ela mesma)

 

Diariamente nossas lembranças vão se acumulando e sendo reinterpretadas em nossa memória. Narrar essas recordações é trazer para o presente um passado muitas vezes esquecido. Revisitar essas lembranças, dando sentido ao que está sendo recordado, é uma ação que nos deixa suscetíveis a sensações de pesar, de alegria, de tristeza, de arrebatamento.  

            Assim, começo a exteriorizar essas lembranças sob a forma de um memorial em que os fatos apresentados neste momento estão dentro da perspectiva da professora que me tornei, tendo consciência que foram esses fatos que me deram existência pessoal e profissional.

            Sou filha de Enivaldo Lira e Idenir da Silva Lira. Pessoas simples, com pouca instrução, mas que reconheciam o valor da educação escolar como fator de transformação da vida de uma pessoa. Nascida no final dos anos de 1950, na cidade do Rio de Janeiro, no seio de uma família pobre, frequentei escolas públicas do Jardim de Infância ao Científico, atualmente equivalente ao Ensino Médio. Não me recordo o nome do Jardim de Infância, mas lembro-me do Grupo Escolar Padre Manuel da Nóbrega, onde fiz o primário e abriu para mim as portas do mundo do conhecimento. No final da quarta série, fiz exame de admissão para fazer o ginásio em uma escola que era destinada apenas para moças, o Colégio Técnico Industrial Aurelino Leal. Essa escola possibilitou-me reconhecer que o mundo das mulheres era mais do que aprender prendas domésticas, era aprender também a cultivar amizades, que algumas perduram até os dias de hoje. Ao final da quarta série ginasial, fiz novamente exame de admissão para o Liceu Nilo Peçanha, onde fiz o Científico, uma vez que minha intenção era fazer Medicina. Aquele espaço escolar oportunizou descobrir que as meninas também poderiam aprender Ciências. Mas, para minha surpresa, por intermédio da minha professora de Biologia, professora Marilena Varejão Guersola, descobri que meu interesse pela Ciências não se limitava ao corpo humano. Assim, ao sair daquela escola, fiz o vestibular para Ciências Físicas e Biológicas, área do conhecimento relativamente nova para o meado dos anos de 1970. Tenho orgulho de ser fruto dessas escolas públicas, às quais muito contribuíram com a minha formação pessoal e profissional.

Com algumas dificuldades, consegui ingressar no curso de Ciências Físicas e Biológicas, minha primeira graduação, na Faculdade de Humanidades Pedro II (FAHUPE), onde obtive meu título de Bacharelado e Licenciatura plena, no ano de 1979. Naquela época, não acalentava nenhuma ideia ligada à docência, pois a figura do professor já havia perdido o seu glamour. Era apenas uma estudante que, por influência de alguns professores, se encantou com a possibilidade de vir a desenvolver pesquisa na área de ciências da natureza. A formação, prioritariamente conteudista, colaborou com essa intenção, conduzindo‑me para um estágio no Departamento de Conservação Ambiental (DECAM), na antiga FEEMA (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente), atual INEA (Instituto Estadual do Ambiente), sob a orientação do Professor Pedro Carauta. Foram quatro anos de experiência de grande importância para minha formação profissional. 

Ao concluir o curso de Ciências Biológicas permaneci no programa de pesquisa da instituição por mais dois anos como bolsista do CNPq. Porém, ao término dessa bolsa de aperfeiçoamento, constatei que não havia grandes oportunidades de me estabelecer dentro da área de pesquisa. Assim, tendo avaliado que a formação recebida até então não me oferecera subsídio suficiente para o exercício do magistério, decidi‑me por uma nova formação.

Aqui, permitam-me abrir um parêntese para abordar a contribuição da minha experiência no Movimento Escoteiro que, na minha visão, fortaleceu a minha opção pelo magistério. Entrei para o Grupo de Escoteiros Martim Afonso aos 17 anos como auxiliar de chefe de lobinhos e, posteriormente, assumi a função de Chefe (Akelá). Lobinhos eram como os meninos que se encontravam na faixa etária de 7 a 11 anos eram denominados, em referência a história de Mowgli, o menino lobo, encontrado no Livro da Selva, de Rudyard Kipling, o qual Baden-Powell se inspirou para o desenvolvimento das atividades desse ramo do escotismo. Através da vivência neste processo de educação não formal que, gradativamente, o meu interesse pelo campo educacional também foi despertando. A educação pela ação é um componente importante dentro do movimento escoteiro. Contudo, igualmente, naquele espaço sentia que minha ação necessitava de um corpo teórico que me ajudasse a compreendê‑la e aprimorá‑la a fim de colaborar, conscientemente, com o desenvolvimento das crianças que estavam sob minha responsabilidade.

Assim, buscando respostas para algumas questões que surgiram da minha atuação enquanto chefe de lobinhos, buscando acesso ao mercado de trabalho e inspirada por alguns professores que passaram em minha vida de estudante, foi que em 1981, após a segunda aprovação no vestibular unificado da Fundação CESGRANRIO, ingressei novamente em um curso de graduação, o Curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Por algum tempo tentei conciliar Movimento Escoteiro, o estágio na área de Fitogeografia na FEEMA a as atividades no Curso de Pedagogia. Entretanto, logo percebi que eu precisava concentrar esforços no que era mais impulsionador da minha recente e consciente opção profissional. A partir dessa reflexão fui despedindo-me do Movimento Escoteiro, após sete anos como chefe de lobinhos, e logo depois das atividades na FEEMA. Dessa forma, passei a dedicar‑me integralmente ao novo caminho que despontava.

Durante a formação no curso de Pedagogia, além das aulas,  exerci a função de monitora na disciplina Psicologia da Educação; participei de atividades de pesquisa e de extensão, como a experiência com Educação a Distância - o projeto LOGUS II/MEC, que qualificava professores leigos no Pará (PA), o que me possibilitou conhecer a Vila de Terra Santa (PA), onde exerci a função de monitora durante 30 dias na Unidade Avançada da UFF José Veríssimo, em Oriximiná/PA; e a experiência das Colônias de Férias realizadas pela PROEX no Colégio Agrícola da UFF Prof. Ildelfonso Bastos Borges, em Bom Jesus do Itabapoana. Essas vivências nortearam minha formação e ratificaram minha opção pelo magistério. Por volta desse período, além de ser aluna da Pedagogia na UFF, também estava inserida no mercado de trabalho como professora em uma creche.

O curso de Pedagogia reafirmou para mim a avaliação que fizera quando de minha formação em Ciências Biológicas, a de que somente a licenciatura em Biologia não fora suficiente para preparar-me para ser professora. Não só durante, como após a conclusão do curso de Pedagogia, fui sentindo-me em melhores condições para iniciar minha jornada no magistério. Isso, particularmente, devido à qualidade dos professores da Faculdade de Educação e à atenção deles em relação aos anseios dos alunos.

Ao término do Curso de Pedagogia, em julho de 1986, ingressei, de pronto, em um Curso de Especialização em Metodologia do Ensino Superior, da UFF. No mesmo ano, minha bagagem acadêmica construída até então, possibilitou a vinda para Santo Antônio de Pádua para lecionar as disciplinas de Psicologia da Educação e Fundamentos Biológicos da Educação, no Curso de Licenciatura em Matemática‑Interiorização.

Aqui, cabe um parêntese para falar um pouco sobre o Curso de Licenciatura em Matemática-Interiorização. Sua origem está vinculada ao desdobramento de uma ação de extensão, desenvolvida no interior do estado do Rio de Janeiro desde 1980, o projeto “Melhoria do Ensino de 1º grau – Matemática”, que tinha como meta melhorar a qualidade de ensino fundamental, através da capacitação de professores de Matemática em cursos de extensão de longa duração (60 horas/aula).[1] A ideia da criação de um pólo, deveu-se à iniciativa dos professores José Francisco Borges de Campos e Rosa Baldi, que propuseram aos órgãos competentes da UFF a interiorização de um curso de licenciatura plena em Matemática, que não somente preparasse profissionais para atuarem com o ensino da Matemática de 5ª à 8ª série e nas séries do Ensino Médio (antigo Segundo grau), como também fossem qualificados para atuarem nas séries iniciais do Ensino Fundamental, inclusive na alfabetização. Tratava-se de um currículo inovador para a época. Além disso, esse curso visava fornecer subsídios à fixação dos jovens na região através do acesso ao ensino superior público de qualidade, evitando assim que estes partissem de suas cidades para os grandes centros em busca de complementação para seus estudos.[2]  Tal ideia foi acolhida, pelo poder público local do município de Santo Antônio de Pádua, juntamente com a direção do Colégio de Pádua, que, na ocasião, ofereceu a infraestrutura necessária para a implementação dessa licenciatura.

A formação desse professor de matemática tinha como referência o currículo da licenciatura em Matemática, da UFF em Niterói, e as disciplinas pedagógicas do curso Normal que atenderiam a formação para as séries iniciais. Era um curso que possuía uma carga horária pesada de Matemática, com Lógica Matemática, Topologia, Análise Matemática, Cálculo Numérico etc. Havia um grupo de professores da UFF, pertencentes ao Instituto de Matemática e à Faculdade de Educação e um grupo de professores contratados. Eu era uma das contratadas, posteriormente efetivada. Originalmente esse curso foi pensado para ser itinerante; ou seja, formada a primeira turma ele seria transferido para outra localidade. No entanto, havia demanda pela formação, pois não existia outra graduação em universidade nas proximidades. Assim, o curso foi permanecendo em Santo Antônio de Pádua. A cada turma que formávamos crescia a necessidade de rever a qualidade da formação oferecida.

Ao entrar para o mestrado em Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1990, propus realizar uma avaliação dessa formação com a colaboração dos ex‑alunos, iniciando o tema da minha dissertação: "Avaliação de Curso de Graduação através de seus ex‑alunos". Ao concluir o mestrado em Educação e apresentar minha dissertação em 1995, havia adquirido maior conhecimento sobre este Curso de Graduação em Matemática e seus principais problemas. Com certeza, esse conhecimento contribuiu para melhorar a minha atuação profissional, tanto no curso de graduação, quanto nos Cursos de Especialização em Matemática para Professores do Ensino Fundamental e Médio e de Especialização para professores de Ciências.

A estruturação do curso de Matemática, dentro das configurações da Universidade, iniciou-se com a criação do Departamento de Educação Matemática em 1996, o que viabilizou a realização dos primeiros concursos para estruturação de um corpo docente efetivo exclusivamente para o curso de Matemática de Pádua. Participei, com aprovação, do segundo concurso realizado pelo departamento.

Na minha vida profissional além de lecionar, coordenar projetos, orientar alunos na graduação e na pós-graduação, também ocupei o cargo de coordenadora de curso. Este cargo atravessou minha formação profissional em três momentos distintos, dois no curso de Matemática e um nas Ciências Naturais. Foram doze anos de experiências que ampliaram meu conhecimento acerca da estrutura da UFF, que possibilitaram o estreitamento de relações e parcerias com a SMEC-Pádua (Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Pádua) e com as escolas no município, que fortaleceram o meu desejo de ser professora. Fui construindo essa formação de ser professora no bojo dessas atividades. Sou professora, com muito orgulho!

Não poderia deixar de mencionar que a receptividade do município e às ações desenvolvidas pela UFF tem sido o diferencial da sua permanência nessa localidade. Essa parceria consolidou a proposta de criação da Unidade de Formação de Professores, que hoje abarca vários cursos de graduação, e atualmente é denominada de Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior.

Da implementação da Licenciatura em Matemática-Interiorização, em 1985, à criação do Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior, em 2009, a UFF de Santa Antônio de Pádua passou por muitas transformações. Foram anos de luta por estruturação de um projeto de formação de professores que contou com a participação efetiva do poder público local e dos professores da rede, muitos sendo alunos egressos da UFF. Nesse sentido, sinto-me privilegiada por fazer parte dessa história. É ímpar o sentimento que me toca ao pensar a respeito.

Nesse processo de construção da minha identidade de educadora, sem dúvida alguma, o Curso de Licenciatura em Matemática-Interiorização e este Município são os expoentes que nutriram essa formação. Foi aqui que eu me tornei professora. Foi na convivência com meus colegas e, principalmente, com meus alunos que me tornei professora. Foi na acolhida dessa cidade por um projeto de formação de professores que eu tive a oportunidade de expandir meus limites vocacionais. Somos fruto de nossas escolhas! Eu escolhi, em vários momentos, permanecer em Pádua. Aqui tenho amigos, comadres e compadres, afilhados de casamento e afilhados de batismo, filhos e netos do coração. Aqui eu tenho o sobrenome UFF, na sede da UFF, em Niterói, eu tenho o sobrenome Pádua. Recebi o título de Cidadania Paduana em 22 de julho de 2004. Dessa forma, também sou cidadã Paduana, com muito orgulho!

Participei da formação de professores por trinta e cinco anos, não só neste município, mas, principalmente aqui. Por isso, sou grata! Grata à Universidade Federal Fluminense, que me permitiu ser agraciada com essa homenagem, e ao município de Santo Antônio de Pádua, porque foi aqui que aprendi a ser professora. Aprendi a ser professora no exercício da profissão. Hoje, ainda me sinto aprendiz de professora. Sou grata aos meus alunos por estarem junto nesse caminho, sou grata aos colegas de trabalho por estarem junto nesse caminho, sou grata a UFF por ter-me incluído nesse caminho, sou grata à comunidade paduana por ter incluído a UFF nessa caminhada.

Nesse momento, não poderia deixar de me solidarizar com os professores que estão retornando às atividades presenciais. Foram tempos difíceis os anos de 2020 e 2021, mas não desistimos da labuta diária, seja remota ou presencial. Ser professor em um país que pouco valoriza esse profissional requer coragem e determinação. Somos muito importantes na transformação da sociedade. Ser professor requer manter vivo o desejo pelo processo de aprender, requer se reinventar a cada aula, requer olhar o planejamento como uma oportunidade de mudança, pois o conhecimento é dinâmico, aberto, fluido.

Por fim, não poderia deixar de mencionar a imensa gratidão que sinto por receber essa Medalha de Mérito Educacional. Penso em muitas pessoas que deram grandes contribuições na área da educação ao município, mas fico muito feliz por Pádua, através do Conselho Municipal de Educação, acreditar que eu seja merecedora dessa homenagem. É emocionante! Tenho a convicção que essa linda homenagem, deve ser estendida a todos os envolvidos na contínua construção da Universidade Federal Fluminense em Santo Antônio de Pádua. Somos fortalecidos, estimulados e agraciados coletivamente pelas experiências oferecidas no espaço de formação/trabalho. Assim, entendo que essa é a maneira delicada da comunidade paduana homenagear a UFF por seus serviços prestados a esta localidade.  São trinta e seis anos de convivência, institucional e pessoal, estabelecida por meio da colaboração mútua UFF-Pádua.  Então, recebo essa Medalha ao Mérito Educacional em nome de todos da UFF, pois foi também por meio das vivências nesta instituição que me construí como profissional e pessoa.  

Desde que eu recebi a notícia, tenho refletido sobre os caminhos que me conduziram a esse momento, tão significativo. O produto dessa reflexão encontra-se nessas memórias, agora expressas em texto. Teria muito mais a dizer, contudo, exteriorizei o que considerei importante na minha caminhada para ser professora/educadora, que partiu do incentivo recebido dos meus pais para estudar, passando pelos professores que despertaram o meu interesse por aprender até minha inserção na UFF como professora em Santo Antônio de Pádua. Portanto, agradeço esse momento de reflexão! Foram trinta e cinco anos de formação nesse contexto UFF-Pádua. Passou muito rápido! Grata!


 

Nós que te agradecemos, Profª Célia, pelo seu legado para Santo Antônio de Pádua!

“Eu escolhi, em vários momentos, permanecer em Pádua” você nos relata neste Memorial. Que privilégio para a educação paduana essa escolha!

Hoje, queremos deixar registrado, nos anais deste Conselho, que a  Medalha n°13 de Mérito Educacional Profª Thereza Caldas segue em viagem com aquela que doou seu coração e sua caminhada, ao longo de 35 anos, para o solo paduano e circunvizinhos. Nossa terra foi fecundada pelas inúmeras lições semeadas na Universidade, mas, sobretudo, pela sua doçura - que  lhe constitui marca peculiar. Parabéns, Profª Célia! E, mais uma vez, o nosso reconhecimento e  profunda gratidão!





[1] Cf. UFF. Instituto de Matemática. Histórico. Disponível em http://www.ime.uff.br/index.php/ instituto/historia. Acesso em: 10 jul. 2014

 

[2] Cf. UFF. Instituto de Matemática. Histórico. Disponível em http://www.ime.uff.br/index.php/ instituto/historia. Acesso em: 10 jul. 2014

 

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